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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Reorganizar a administração local

“Reorganizar a administração local. Existem actualmente 308 Municípios e 4259 Freguesias. Até Julho de 2012, o Governo desenvolverá um plano de consolidação para reorganizar e reduzir significativamente tais entidades. O Governo implementará este plano baseado no acordo com as delegações da Comissão Europeia e do FMI. Estas alterações, que entrarão em vigor no início do próximo ciclo eleitoral local, melhorarão a qualidade dos serviços, aumentarão a eficiência e reduzirão custos.”

É este o texto que consta do “memorando da troika”. É o famigerado ponto 3.43., sob o pretexto do qual o ministro dos Assuntos Parlamentares (ou Primeiro-Ministro em exercício, como se prefira) Miguel Relvas diz que assentará uma “revolução tranquila”. À primeira leitura o que a “troika” exige parece simples: existem demasiados Municípios e Freguesias em Portugal, reduzam-se.

O objectivo que consta deste ponto é muito claro: “reorganizar a administração local de modo a melhorar os serviços, aumentar a sua eficiência e reduzir os seus custos”. Ora, alguém no seu perfeito juízo e de boa-fé acredita que tal objectivo se atinge única e exclusivamente cortando freguesias a eito, e mais, sem fazer o mesmo com os Municípios? É que é compreensível que um nórdico do BCE ou um norte-americano do FMI ache estranho que p.ex. Porto, Gaia e Matosinhos não sejam um único Município, quando o que os separa é, literalmente, uma placa; já acho que seja difícil de explicar aos mesmos senhores que se extinga uma freguesia e que deste modo se prive uma comunidade de cidadãos de serviços públicos básicos, só porque têm a infelicidade de viver numa zona deprimida com poucos habitantes.

O que me parece que continua a escapar a este Governo é pura e simplesmente a realidade do País que tem a seu cargo. É óbvio que um habitante da Campanhã, freguesia do Porto com cerca de 40.000 habitantes, ao precisar de uma prova de vida ou de um atestado de residência, não verá o seu quotidiano alterado por ter de se deslocar à Câmara Municipal. Perde cerca de 10 minutos do seu dia. Mas o cidadão da Mata da Rainha quando precisar do mesmo serviço, necessitará de se levantar às 6 da manhã para apanhar o autocarro e deslocar-se a Vale de Prazeres ou ao Fundão, esperar o resto do dia pelo autocarro das 5 da tarde para, finalmente, chegar a casa 12 ou 13 horas depois. Perde um dia para obter o serviço que hoje lhe custa 2 passos e 5 minutos. O exemplo é exagerado e fictício mas é esta a realidade da esmagadora maioria das freguesias rurais do nosso País.

Eleger as Freguesias como as culpadas do actual desgoverno e calamidade financeira do Poder Local é, no mínimo, não-sério. É ignorar que hoje, em muitos casos, a Junta de Freguesia é o último bastião do serviço público para muitos cidadãos. Cidadãos que devem ter a liberdade de continuar a viver nas suas terras, com o mínimo de qualidade de vida e conforto, no que toca a serviços públicos básicos. É ignorar os verdadeiros milagres que muitas Juntas fazem com os miseráveis orçamentos que têm. É ignorar que os elefantes brancos que pintam muitas das Freguesias representaram gastos e má gestão não das suas Juntas, mas dos Municípios onde se inserem.

Importa reter alguns números: o Estado transferiu por via do Orçamento de Estado em 2011 para as 4259 freguesias, € 193.639.454,00 (menos € 18.203.748,00 que em 2010); para os 308 Municípios transferiu em 2011 € 2.397.864.673,00 (mais € 163.945.768,00 que em 2010). Os Municípios receberam a mais em 2011 quase o equivalente ao valor total das transferências para as Freguesias…

Penso que de facto é necessária uma revolução (que não será, com toda a certeza, “tranquila”) na organização da administração local e que tal inevitavelmente terá de passar também pelas Freguesias. Mas também penso que tal reorganização não passa pela mera extinção de freguesias assente em critérios quase matemáticos e automáticos e que antes de se mexer no poder local de maior proximidade tem de se começar por mexer nos Municípios. A Associação de Municípios não se cansa de apregoar que se o Estado Central transferir mais competências para as Câmaras Municipais, com a correspondente verba obviamente, os Municípios prestam melhor tais serviços, de modo mais eficaz e com menos custos. Tal argumento aplica-se integralmente às Freguesias que, por estarem mais próximas dos seus cidadãos, serão capazes de atingir estes objectivos (afinal que a “troika” nos impõe) ainda de modo mais eficaz.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Troikas


Tenho ouvido e lido dos mais diversos quadrantes políticos, que o Governo tem sido um bom e esmerado aluno dos professores da “troika”, cumprindo integralmente aquilo que foi assinado com a Comissão Europeia, BCE e FMI, indo até por vezes mais além, o que já nos terá valido um “Satisfaz Bastante” e o correspondente afastamento do caso grego.
Há aqui, desde logo, uma enorme incongruência neste raciocínio. A Grécia foi “resgatada” pela “troika” antes de Portugal. Para receber os milhões de ajuda externa, comprometeu-se a cumprir um “memorando” e aplicou austeridade em cima de austeridade. O resultado foi o inevitável colapso da economia grega e a impossibilidade de pagar o empréstimo. Ora, o Governo e os analistas de serviço defendem que o cumprir cegamente o acordo celebrado com a “troika” nos afasta do caso grego quando, foi exactamente o cumprimento cego desse mesmo acordo que levou a Grécia ao estado em que se encontra.
Na verdade, o Governo faz do memorando uma coisa que ele não é: um Livro Sagrado, cujas Leis devem ser seguidas sob pena de condenação eterna; mais ou menos a visão que um “taliban” tem do Corão. Faz uma interpretação literal, sem qualquer ponderação ou raciocínio e, mais grave, sem qualquer preocupação do enquadramento com a realidade. E é aqui que reside o maior pecado deste Governo, não apenas quanto a este ponto específico, mas quanto a todo o documento.
Na realidade, o documento assinado em Março entre PS, PSD, CDS e a “troika” é um “memorando de entendimento”, onde são estabelecidas linhas orientadoras tendentes ao tão ansiado equilíbrio orçamental. As linhas constantes do documento são genéricas, apontam objectivos mas – e isto é muito importante – deixam ao Governo a decisão do caminho a fazer para os atingir. A maior prova de que o Governo tem essa liberdade tivemo-la recentemente quanto à questão da Taxa Social Única: o Governo simplesmente disse que não iria efectuar a redução “significativa” defendida pelo FMI. Que me tenha apercebido, desde então o Céu não caiu, nem se abriram rios de fogo e lava.
Admitir que os pressupostos que estiveram na base do acordo mudaram e que, naqueles termos, só teremos um desfecho que é recessão e incumprimento é ser verdadeiramente responsável. Só assim, damos o sinal aos nossos credores que queremos de facto cumprir os nossos compromissos e pagar a nossa dívida. Se ao invés, continuarmos a insistir que vamos cumprir este “memorando”, mesmo quando é já claro que tal será de todo impossível, perderemos de vez qualquer credibilidade que ainda nos reste, desde logo por termos – mais uma vez – falhado. 

As ideias dominantes

“As ideias dominantes numa época nunca passaram das ideias da classe dominante.”

Karl Marx escreveu-o há mais de 100 anos. A História não o desactualizou. Ao contrário, a actual situação mundial confirma e reforça o seu pensamento.
Nunca a teoria da luta de classes esteve tão actual como nos tempos que vivemos. Concedo que hoje, pelo menos no nosso País cujo sector produtivo é quase residual, que a classe “dominada” não seja já a classe operária. A classe “dominada” dos nossos dias é aquela faixa da população que é a maioria dos cidadãos portugueses cujos rendimentos se encontram entre os € 800,00 e os € 1.500,00, que se esforçam todos os meses para pagar a sua casa, a educação dos seus filhos, enfim, as suas contas.
Aquele fenómeno de extinção da classe média que nos habituámos a ver em países terceiro mundistas da América do Sul ou de África está a chegar – e em grande velocidade – ao “velho continente” dos direitos sociais e da qualidade de vida.
Quando da tomada de posse do novo Governo tivemos um primeiro sinal: a esmagadora maioria dos Ministros são, efectivamente, ricos, muito ricos. Não tenho nada contra quem é abastado. Move-me antes o sonho de um dia sermos todos assim, mais do que a inveja de quem já o é. No entanto, o facto de quem nos governa ser “super-rico” tem um problema: o desconhecimento ou sensibilidade para a realidade da maioria dos governados. É óbvio que será muito difícil explicar ao Ministro da Saúde – que em 2010 declarou só em sede de IRS mais de € 800.000,00, que pagar “apenas € 50,00” de taxa moderadora num Hospital, significa para muitas famílias uma grande parcela do seu rendimento mensal. Até acredito que o Ministro em causa não o faça por maldade, fá-lo por desconhecimento. A realidade dele é outra. “Como alguém poderá queixar-se de uma taxa moderadora que é menos que o que gasto todos os dias ao pequeno-almoço?”, pensará.
A classe governante – e aqui incluo os actuais e os que nos governaram nos últimos 30 anos – há muito que se afastou da realidade do País que comanda. Vive numa realidade paralela de elevados rendimentos e luxo. Serve não um País mas um núcleo de interesses privados ligados à alta finança e ao sector privado, como quem retribui agora o bom trato que deles recebeu ao longo da vida. Não compreende a noção de serviço público básico, pois nunca teve de a ele recorrer: tem os filhos em colégios privados e a saúde fornecida por seguradoras. Não sabe o que é apanhar um autocarro. Não sabe quanto custa um pão ou um quilo de arroz.
E são estas pessoas que, com a maior desfaçatez, nos dizem que falhámos. Que nos dizem que andámos a gastar acima das nossas possibilidades. Que somos privilegiados com direitos a mais. Nós, os portugueses contribuintes e anónimos, que sempre cumprimos com aquilo que nos pediram, agora é que teremos de sofrer sacrifícios, de pagar as facturas. Já eles, que se governaram, que jogaram os nossos milhões na Bolsa e que destruíram tudo o que ainda produzíamos, eles que realmente falharam, cumpre-lhes puxar-nos as orelhas e aplicar-nos austeridade como quem dá um castigo a um filho mal comportado.
É verdade que o País chegou à bancarrota. É inegável que são necessárias medidas severas para voltar a equilibrar a economia – medidas que têm de passar por duros cortes. Mas o que não se compreende – ou melhor, compreende-se mas não é justo – é que os responsáveis por toda esta situação não sejam minimamente beliscados por elas. O que se compreende mas não é justo, é que ataquem precisamente quem ainda tinha umas moedas para consumir e assim animar a economia. O que se compreende mas não é justo, é que os verdadeiros responsáveis pela actual situação do nosso País, aqueles que realmente falharam, sejam os mesmos que hoje nos impõe a mesma fórmula, a mesma receita que precisamente nos trouxe até onde estamos.
O Brasil – País desde sempre de grandes desigualdades sociais – viu a sua economia e a sua riqueza crescer nos últimos anos. Ali, o Estado aplicou uma receita em tudo oposta à que Portugal teimosamente insiste em seguir. O Estado Brasileiro resolver gastar mais com quem menos tinha. Resolver dar as tais moedas a quem não as tinha. O resultado foi o consumo, que alavancou a produção que, inevitavelmente, aumentou o emprego e gerou mais riqueza. Hoje, preocupam-se com a possibilidade da economia em 2012 crescer “apenas” entre 3% e 3,5%...As projecções mais optimistas para Portugal indicam uma recessão de 2,8%. Preconceito ideológico ou realidade factual?